A FACA E O LENÇO

Luiz Antonio Sega
Pitanguinhas / 2004

Enquanto em tiram o sangue
De novamente estou aqui
Para cantar nas pitangas
Quem já bebeu desta sanga
Nunca deixa de ter sede
Me sinto um peixe na rede
Se estou longe do Uruguai
Sou filho cópia do pai
O rio me fez igual a si
Que sem nunca sair daqui
Eternamente se vai

Canto de novo senhores
Canto e não faço segredo
Trago na mala o enredo
Que costurei ano passado
Ao sentir meu lenço cortado
Até de mim tive medo
A faca tremeu nos dedo
E ficou roçando na ilharga
Quase que a pitanga fica amarga
E nos íamos embora mais cedo

A noite seguia bonita
E eu alheio tocando
A gaita choramingando
Na minguante de novembro
Foi bem aqui eu me lembro
Que o caso se sucedeu
Quando um grande amigo meu
Das bandas de três de maio
Cortou seco, de um só taio
O lenço que a iara me deu

Cortar o meu lenço em dois
Só por farra, brincadeira
Eu trazia como bandeira
Um documento maragato
Meu lenço era de fato
Muito mais que um patrimônio
Usei no meu matrimonio
Naquele 15 de janeiro
Entrei garboso e faceiro
Rezando pra santo Antônio

La da terra donde vim
Por muito menos se matavam
As razões até justificavam
Baralho. China carreira enfim
Era o costume lá em ipumirim
O berço do payador
O lenço vinha rubro na cor
E a justiça na bainha
E ninguém fazia ladainha
Pra sangrar um pecador

E eu que sou madeira bruta
Mas que a vida foi moldando
Eu digo e não to brincando
Também me senti faqueado
Vendo meu lenço cortado
Dependurado, o nó desfeito
Eu quase não tenho defeito
Mas é curto meu pavio
Pensei, hoje eu passo no fio
Quem te cortou desse jeito

Com os olhos marejados
Vendo meu lenço em dois
Me dei conta só depois
Quem tinha sido autor
O homem ficou sem cor
Ainda hoje me arrepio
Falou assim grave e macio
-o que fiz foi sem pensar
E se tu não me desculpar
Desço, e me jogo no rio

Senti então que sua dor
Era de todo igual a minha
Mantive a faca na bainha
Hay que se ter prudencia
Amizade é mais que uma ciência
E o estrago já tava feito
Eu, mesmo bueno de eito
Por certo pegaria condena
Pelear não valia a pena
Eu não tinha esse direito

Nos valha então a lição
Não se brinca com o perigo
Não fosses tu meu amigo
De trago pitanga e canção
Talvez o barro do chão
Ficasse um pouco amassado
Mas um abraço apertado
Resolveu a situação
Pois o sentimento de irmão
Foi maior que um lenço cortado

E assim na peleia da vida
As vezes saímos cortados
Com pedaços costurados
Remendamos a existência
Mas sem perder a essência
De filhos do grande arquiteto
Que fez o céu pra nosso teto
A terra pra nos dar comida
E nos mandou costurar a vida
Com amor carinho e afeto

Na equação da nossa vida
A ciência não é exata
As vezes quando se empata
Nos damos por satisfeitos
E se na pitanga há o conceito
De que a soma multiplica
A adição que aqui se aplica
Resulta numa unidade
Que pra matar a saudade
Vem beber na mesma bica

Dentre as utilidades
Pra que uma faca foi feita
Não tome por desfeita
Vou te fazer um resumo
Cortar palha , picar fumo
Limpar unha , carneação
Tirar estrepe , castração
Charque, filar maneias
E até mesmo pras peleias
A sua maior precisão

Mas cortar um lenço
Isto não tava previsto
Eu nunca tinha visto
Penso que nem este povo
Tu me deste um lenço novo
E uso e digo obrigado
Mas este que tá remendado
Não perdeu o seu direito
Foram dez anos no peito
Não posso deixar de lado

Na cor da seda ou do pano
O lenço é o próprio passado
Dizem que foi um legado
Dos mouros e dos ciganos
E já enfeitava o castelhano
Quando aqui chegou da Ibéria
Esta raça de gente seria
Dos domadores de touro
Que trouxeram o sangue mouro
Correndo na sua artéria

As vezes quando mateio
Eu passo a mão no meu lenço
Eu penso, penso e repenso
O meu pensamento eu floreio
Me vejo sobre um arreio
De garrucha, lança e punhal
Quem sabe até um general
Com a farda virada em fiapo
Peleando no chão farrapo
Da pampa continental

E no pescoço esta bandeira
Trazendo a marca da talha
Lambendo minhas medalhas
Que ganhei em pensamento
A galope de contra o vento
Nos meus sonhos de batalhas
Só não levo pra mortalha
Pois na promessa eu sou fiel
Vai ficar pro Daniel
Com a faca , o pala e outras tralha

E a velha faca kaminski
Que ostentas na tua guaiaca
Uma legenda polaca
Mais velha que nossos pais
Não ias portá-la mais
Mas faça minha vontade
Use esta raridade
Que te custou mil pataca
Por mais que corte tua faca
Não cortou nossa amizade

E por falar em polaca
Neste verso eu pego um gancho
E me reporto ao meu rancho
Onde é soberana minha prenda
Formosa em saia de renda
Na sua graça polonesa
Mesmo com toda a firmeza
Que trouxe da estirpe eslava
Eu lembro que ela chorava
Ao saber da tua proeza

Eu disse a ela e vos digo
Já indo pra conclusão
Eu me tenho por bom cristão
Mas sempre digo o que penso
São duas partes de um lenço
Cobrindo meu coração
A amizade e a saudade
Cerzidas com perfeição
Sentimentos de irmandade
Que levamos deste chão
Já remendei este corte
Eu creio em deus e na sorte
Mas na pitanga só mesmo a morte
Pode apartar um irmão.